Imagine um tempo antes do nascimento do próprio tempo. Imagine um tempo quando nenhum sol iluminava o céu sem cor. Quando nenhuma lua era refletida no mar escuro. Quando nenhum pássaro cantava na floresta, nenhum cavalo corria por vastos pastos, nenhum urso dormia em sua caverna fria. Imagine um tempo quando não havia ar, nem água, nem terra; nenhuma vida , nenhum nascimento, nenhuma música. Em todo o Universo, apenas três coisas existiam. Havia um rio, onde fluía uma mistura de possibilidades. Havia um espaço, vazio e negro, e sem ao menos uma estrela solitária. E havia uma garota. O rio era o poder em movimento no Universo. O espaço era o poder do silêncio. E a garota era filha de ambos. Seu nome era Luonnotar, criança da natureza. Vivia sozinha, sem irmãs, amigos ou companheiros. Não existia qualquer lugar para caminhar, por isso ela não caminhava; nenhum lugar por onde correr, por isso ela não corria. Ela nada fazia, além de repousar na tranqüilidade do espaço, observando o rio fluindo para a eternidade. Não existe nome para o que Luonnotar fazia. Não se pode dizer que ela estivesse dormindo. Dormir significa sonhar e sonhar significa sonhar sobre coisas, mas nada acontecera em toda a eternidade que Luonnotar se lembrasse, e os sonhos não podem surgir do nada. Mas também, não estava realmente acordada, o que significaria movimentos, conversas, cantos e dor. Luonnotar nada dizia ou cantava, pois nada havia acontecido para ser dito ou cantado. Luonnotar não sofria, mas também não se alegrava. Simplesmente, vagava e observava e esperava. Então, um dia – se é que pode haver “dias” onde o tempo não existe – alguma coisa aconteceu. Luonnotar sentiu um aperto no peito, como se seu coração estivesse machucado ou magoado. Ela se deitou, flutuando pelo espaço, nas cercanias do rio eterno, maravilhada com essa sensação. Na eternidade – mais lentamente do que você pode imaginar – ela percebeu que sentia algo. Ela sentiu o desejo e o vazio. E, de dentro daquele vazio, fluiu um rio de ansiedade, de querer e de desejo. O que ela desejava? Como ainda nada houvesse acontecido no Universo, Luonnotar não conseguia reconhecer que ansiava por movimento. Como ainda nada houvesse mudado, ela não poderia saber que desejava mudanças. Mas, depois daquele momento, quando, no frio do espaço, observando o rio negro fluindo ao seu redor, ela fez algo totalmente novo. Lentamente – mais lentamente do que você possa imaginar – Luonnotar teve uma idéia. Nunca, antes, algo semelhante havia acontecido no Universo, por isso levou um longo tempo para essa idéia ser formada. Depois de um tempo inimaginável, quando sua idéia estava completa e finalizada, Luonnotar sentiu-a como o nascer do primeiro sol de pensamento, brilhante e forte. Então ela agiu. Luonnotar mergulhou do espaço para o grande rio. Aconteceu em apenas um breve momento e já estava de volta à superfície. Embora o rio fosse infinitamente profundo, Luonnotar não afundou. Flutuando de costas, levantou os olhos para o espaço de onde ela saltara. Não havia luz, nenhuma estrela brilhante ou uma lua radiante ou um raio de sol, somente vazio e perfeito silêncio. Luonnotar repousou novamente, vagando através do Universo, nas ondas do rio que corria sob o espaço. Ela viajou por vastas distâncias mas era como se não se movesse. Por todos os lugares, tudo parecia igual: ainda eram apenas um rio, o espaço e uma garota. Entretanto, nenhum ato, mesmo que pequeno, é isento de conseqüências, pois tudo no Universo está conectado. O mergulho de Luonnotar mudaria tudo, para sempre. Levou um tempo sem fim para que essa mudança se revelasse, mas finalmente, algo aconteceu: uma pata nadou até Luonnotar. Uma pata... naquele Universo totalmente vazio, onde, até então, existira apenas um ser! Como isso veio a acontecer? Como, agora, havia dois? Isto aconteceu porque Luonnotar se moveu, mudando o eixo do Universo. Em seu desejo por mudanças, a garota criou um novo mundo, um mundo no qual uma pata podia existir. Luonnotar deitou-se muito quieta. A pequenina pata nadou pra lá e pra cá, observando a garota flutuando. Então, ela subiu no joelho de Luonnotar e se sentou, tranquilamente, fora do frio do grande rio. Em seguida, outra coisa aconteceu, algo tão belo que Luonnotar não podia acreditar no que seus olhos estavam vendo: a pata botou três pequenos ovos sobre o joelho dela, o único lugar quente e seco em todo o Universo. O único lugar onde o futuro poderia “chocar”. Luonnotar ficou muito, muito quieta. Ela decidiu não se mover, mesmo que fosse o movimento mais insignificante. A pata sentou-se sobre seu ninho e os ovos ficaram mais e mais quentes. O futuro, com todas as suas diversidades, aproximava-se cada vez mais. Luonnotar desejou aquele futuro. Ela ficou tão ansiosa que aquela dor retornou ao seu coração, mas ela ignorou. Sua pele comichava sob as penas e os pequenos arranhões das patas membranosas da ave. Mas ela ignorou isso também. O futuro estava em jogo e ela queria protegê-lo. Assim, dia após dia, ela flutuava, totalmente imóvel. A pata sentada sobre os ovos; os ovos pousados sobre o joelho da garota; e a garota flutuando no rio do paraíso. Então, inesperadamente, a pata mudou sua posição e as penas de sua cauda causaram coceiras na pele de Luonnotar. Seu joelho se contraiu. Ela não fez de propósito. Aconteceu sem o seu controle. E não foi muito: apenas uma pequenina contração. Mas foi o suficiente. Luonnotar viu, horrorizada, os preciosos ovos rolarem de seu joelho para o rio cósmico. O que ela tinha feito? A única tarefa de toda sua existência, e tinha falhado! Teria arruinado tudo? Luonnotar viu os ovos baterem contra as ondas, temendo que afundassem e ficassem para sempre longe dos olhos. Seu medo era que o futuro poderia estar perdido no escuro rio do tempo. Em vez disso, os ovos se quebraram e se abriram. Maravilhas jorraram. As gemas se juntaram, formando uma esfera amarela que se elevou brilhante no céu. As claras uniram-se e formaram uma lua prateada. Os fragmentos das cascas cintilaram seguindo rio acima e resplandeceram em incontáveis estrelas. Na monotonia do espaço, onde Luonnotar nunca vira nada além do grande vazio, a luz surgiu. Foi mágico. E Luonnotar, de cujo desejo essas maravilhas nasceram, estava mudada. Ela mergulhou no rio celestial. Fundo, fundo ela mergulhou. Alguma coisa estava lá. Podia sentir aquilo chamando por ela. Lá estava! Luonnotar avistou um pedaço de lama na escuridão sob o rio. Ela agarrou um pouco em suas mãos e nadou para a superfície. Lá, flutuando de costas, formou, sob seu ventre, um cone com a lama. Quando ela o colocou cuidadosamente na superfície do rio, ele se elevou, transformando-se em uma montanha. Ela mergulhou novamente, repetidas vezes. A cada vez que retornava com as mãos cheias de lama, criava algo novo. Numa hora, era uma ilha, noutra um vale sem árvores. Furiosa e alegremente, Luonnotar trabalhou. Construiu penínsulas e continentes, altos cumes e férteis planícies. Ela esculpiu o traçado dos rios e escavou a terra formando lagos. No céu, inspiradas pela criatividade de Luonnotar , as pequenas estrelas se uniram, formando símbolos e desenhos. A lua aprendeu como mostrar suas faces mutáveis para terra. O brilho irradiante do sol aprendeu a nascer e a se pôr, dividindo, em dias, o tempo-sem-fim. Quando Luonnotar construiu a terra, esta explodiu em exuberância. Flores vermelhas surgiram de trepadeiras. A grama ondulou suavemente ao sabor do novo vento, e pequeninas flores surgiram, de repente, por entre rochas duras e cinzentas. E, então, surgiram os animais, crianças da nova terra. Os pássaros encheram a floresta com música os cavalos correram sobre a grama ondulante. Nas cavernas, ursos faziam suas frias tocas. Os macacos faziam algazarras nas enormes árvores das selvas. As baleias imergiram profundamente, nas frias águas oceânicas. E sobre os picos nevados, as águias alçavam vôo e atingiam grandes altitudes. Por fim, cansada, a Criadora sentou-se numa alta montanha. Luonnotar ergueu os olhos para o céu brilhante e olhou ao redor para a terra verde e para o profundo azul das águas que faiscavam sob o novo sol. Ela olhou para tudo que tinha feito e soube que era bom.
Fonte: “Garotas Selvagens – O Caminho da Deusa Jovem”, Patricia Monaghan
Ed. Gaia (Coleção Gaia Alemdalenda) – São Paulo, 2003
INTERPRETANDO O MITOPosteriormente, conheceremos a fundo o que é a mitologia, e qual a sua importância para a humanidade. Este será um dos diversos assuntos que farão parte do nosso quadro de estudos. Porém, neste primeiro momento, julgamos ser deveras importante, expor e analisar o mito finlandês da Criação através da Deusa Luonnotar, uma vez que é desse mito que extraímos o nome do nosso Grupo.
A Finlândia é um dos países que formam, junto com Suécia e Noruega o que chamamos de Escandinávia, ou seja, a península subártica. Lá, estes povos possuem uma rica cultura que durante milhares de anos permaneceu intacta através de contadores tradicionais de histórias. Desde senhoras às jovens, muitos são os mitos preservados pela tradição oral.
Um desses mitos, e talvez o mais conhecido pelo povo finlandês, é o de Luonnotar, a garota que deu origem a tudo o que existe.
No início do mito percebemos o vazio do qual era feito o Universo. Nada realmente existia, a não ser o Espaço, um Rio e uma Garota, Luonnotar. Se analisarmos através de um olhar filosófico e simbólico, veremos que assim o é até hoje. O Espaço representa de forma clara o ambiente, o local onde vivemos, que aliás, também chamamos de “espaço”. O Rio nada mais é do que o fluxo de tudo, a forma como as coisas acontecem, afinal um rio nunca tem seu fluxo interrompido, ele é pura fluidez. E a Garota é um arquétipo que representa todos nós, e principalmente a forma como nos relacionamos com o fluxo da vida e o ambiente em que vivemos. A solidão de Luonnotar que é descrita no mito, evidencia e reafirma que nossos pensamentos são ímpares e nos tornam solitários em relação aos demais. Cada um de nós possui uma forma diferente de “enxergar” as coisas a nossa volta.
Vivemos nitidamente, guiados por padrões e conceitos que não são exatamente nossos. Em muitos momentos sentimos necessidade de mudar, de conhecer algo novo, de passarmos por uma profunda transformação. Porém não nos damos conta disso, e passamos a nos sentir estranhos, como se estivéssemos realmente machucados, magoados com algo. Algo nos incomoda, fazendo com que ansiemos por algo que também não definimos. Neste estágio, muitas pessoas entram em depressões ou passam por sérios problemas psicológicos. Isso é justificável, pois o ser humano está em constante desenvolvimento. Negar isso faz com que neguemos nossa própria evolução, o que não é algo natural, e conseqüentemente passamos por alguma reação a essa atitude de negação. Vivemos segundos padrões tecidos pela sociedade, e grande parte da população se tornou alienada em relação a esses padrões. Alienados religiosos, políticos, sociais e até mesmo, e principalmente, culturais são os que lotam a demografia do Planeta Terra. Existem, porém, aqueles que procuram a mudança, que anseiam por transformação. E enlevados por esse desejo se deixam guiar pelo fluxo da mudança e, assim como Luonnotar, mergulham no rio da vida onde o poder do movimento impera. E como cada ação possui uma reação, a mudança traz a transformação e coisas novas surgem. No mito de Luonnotar, após mergulhar no rio que a cercava, a garota viu uma pata, que era resultado de seu desejo por mudanças. A Garota criou um mundo onde uma pata podia existir. Isso também acontece quando mudamos algo necessário, inclusive em nós mesmos: um mundo até então desconhecido, surge. Em alguns casos, logo queremos desvendar esse novo mundo, essa nova vida. Mas em sua grande maioria, temos medo e receio de trilhar o novo caminho. Criamos obstáculos e mais obstáculos que nos impede de enxergar a maravilha que é o novo. Somente observamos, assim como Luonnotar “os ovos sobre os nossos joelhos”. Mas o novo é incontrolável. Ele anseia por vida, ele anseia por se fixar e se tornar real. Como um estopim, um pretexto para conflagração, e sem o nosso controle, o novo domina o cenário de nossa existência, e nos traz experiências surpreendentes. “O ovo se quebra”. O medo se transforma em admiração. Podemos enfim, perceber a grandiosidade que é o desejo por mudança, a cupidez pelo novo.
O grupo de estudos Luonnotar foi idealizado exatamente dessa forma: através do desejo por mudança. A curiosidade e a vontade de transformação da Deusa, através de sua face jovem, como a garota Luonnotar, define o tipo de energia que esperamos compartilhar em nossos encontros. Indagando, debatendo, esclarecendo os mais importantes assuntos que formam a base da Religião Wicca, tão deturpada pela sociedade atual, entraremos em contato direto com Luonnotar, com a Deusa.